374. Interestelar

quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Postado por Selton Dutra Zen



(Obra-prima)

Escrever é uma arte e, como tal, exige demais do campo dos sentimentos. Claro, é através da escrita, do som ou da imagem que nos desconstruímos e expressamos tudo o que há de melhor ou pior dentro de nós mesmos – não é à toa que a melancolia sempre foi ótima fonte de inspiração. E justamente por esse contato íntimo que conservo com a escrita que me senti, confesso, acuado em escrever sobre “Interestelar” (2014). Conferi o longa em seu fim de semana de estreia mas demorei para comentá-lo em texto devido uma alienação gigante que senti ao seu encerramento principalmente por não saber como transpor o que sentia em palavras. O novo longa do inglês Christopher Nolan é muito mais letárgico e sentimental do que eu realmente estava preparado para encarar – e me senti distante, transitando por dimensões ainda não concebidas, com dificuldade de voltar: “Interestelar” me conduziu a uma viagem tão espiritualmente devastadora e construtiva como há muito não via em um filme de ficção.

Conduzindo a épica jornada está Cooper, engenheiro frustrado e ex-piloto espacial que é chamado a liderar uma expedição com intuito de estudar outros planetas possíveis portadores de vida, já que a Terra e toda sua população está à beira do colapso e extinção. Para tanto, devem penetrar o âmbito desconhecido de um buraco negro, suposto portal para outra galáxia. O drama é que Cooper pode nunca mais voltar a ver seus filhos, devido a relatividade de tempo e espaço existente em domínios extra-humanos. Com isso, o acerto de Nolan começa logo no casting, ao confiar o protagonismo a Matthew McConaughey, que vem se provando cada vez mais habilitado e maduro para tomar as rédeas de personagens muito mais complexos, desde 2011, tendo como exemplo longas como “Killer Joe”. Surgido e estabelecido no mundo das comédias românticas, sempre como o personagem encarregado de arrancar suspiros da plateia feminina, Matthew, aqui, encabeça um homem fragilizado pela perda dolorida de sua mulher, pela frustração de viver deslocado em uma época e ambiente que não contemplam a criatividade intelectual de sua formação, além de lutar diariamente para o sustento de seus dois filhos ainda menores. O que mais impressiona na concepção do personagem é seu metamorfismo durante a projeção. Não era para menos, após presenciar situações inomináveis, o mínimo a se esperar de seu comportamento é um amadurecimento gritante – justamente o que acontece. Afinal, há uma jornada muito mais espiritual que técnica acontecendo. 

Fazem parte do elenco, também em performances notáveis, as queridas da américa Jessica Chastain e Anne Hathaway, pauteadas por um Michael Caine já em idade avançada. Todos em um entrosamento capaz de levar diversas cenas nas costas sem grandes dificuldades.

Mas, dentre tudo, é necessário deixar a racionalidade um pouco de lado (embora esta se faça fortemente presente ao longo de toda a trama) e contemplar a conquista do próprio Nolan em um âmbito inédito ao cineasta. Ao tratar de questões não mais puramente frias e teóricas, o diretor abre espaço para mostrar seu lado que até então tinha permanecido escondido: a expressão dos sentimentos. Pela primeira vez, Christopher prova ser um realizador extremamente hábil no domínio dos sentimentos e fazer com que estes alimentem a narrativa de forma tão significativa que se torna impossível o não envolvimento do espectador na jornada interestelar. Seus outros longas, embora sejam trabalhos notáveis, ainda são frios e carecem de um maior engajamento humano. “Interestelar” surge justamente para mostrar o contrário e de forma não tão fácil: extrair sentimentos de uma plot por natureza extremamente técnica e racional. Não que a racionalidade tenha sido abandonada. Pelo contrário, ela se faz notar deveras. A diferença é que há espaço narrativo para que a frieza da racionalidade ande de mãos dadas com o aconchego dos valores humanos. E ainda se faz mais: Nolan cria a sensação de que sem um, o outro não existiria.

Como se não bastasse reunir duas qualidades escassas no cinema contemporâneo, fazer pensar e fazer sentir, o diretor ainda reserva um truque na manga: se apoiar em um dos maiores clássicos da história do cinema, “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968), de forma a tentar homenagear a figura de Kubrick e seu legado inestimável. E o que conta como fortaleza é a atitude de se basear em “2001...” não como fonte de consulta, mas como fonte de inspiração. Dessa forma, o processo se torna muito mais de homenagear que de aplicar a formula de grande sucesso do filme de 68. E quem me conhece, sabe de minha devoção ao filme de Kubrick – de longe, meu filme favorito e, para mim, o longa mais próximo a perfeição já concebido e executado no cinema. Desta forma, surge como uma honra imensa de minha parte presenciar uma obra tão importante tratada com tanto zelo e igual admiração. O cuidado de Nolan ao reprisar algumas trucagens empregadas por Kubrick na produção original são destacáveis. Notem o formato do robô que auxilia os astronautas na jornada interestelar, muito semelhante ao de um monolito, ou mesmo a forma de tratar o espaço como um vácuo, desprovido de som. E nisso a mixagem sonora acerta justamente por descobrir e desconstruir os acertos de Kubrick e aplica-los, quase como um estudo, de forma discreta, porém sempre eficiente. O uso da trilha sonora, em “Interestelar”, remete muito ao clássico, com direito a composições mais graves e até trechos eletrônicos simulando orquestras ou composições eruditas. Há uma tentativa de modernizar – que obtem muito êxito.

Ainda nesta linha de pensamento, notem como os trajes espaciais diferem bastante das genéricas vestimentas dos astronautas dos filmes de ficção atuais, os planos com enquadramento baixo (com a câmera colada às latarias) adotados pela fotografia e mesmo o design das naves (em especial, a estação que permanece orbitando e transportando a nave dos protagonistas) se aproximam consideravelmente da criação kubrickiana, ainda que sempre com a marca do realizador. Prova disso é a montagem impecável, marca registrada de Nolan, que engrandece a inteligência da narrativa sem se mostrar carregada ou exagerada. É interessante como Nolan usa o contexto de relatividade temporal como base de sua própria lógica de edição: se apossando de uma trama complexa e extensa, o espectador pode notar o esmero dos envolvidos em retratar a trajetória completa em pouco menos de 3 horas (que, acreditem, passam voando). O truque para isso é justamente coordenar as duas realidades (terrestre e espacial) de forma a transmitir espaços de tempo variados, distorcendo literalmente a noção de tempo e espaço que o espectador possa vir a conservar durante determinadas sequências – algo que se revela um acerto extra no encerramento do filme. Assim, Nolan tem em mãos o controle total do tempo que precisa gastar para evoluir a narrativa da forma que bem entender. Prova disso é a brilhante sequência do pouso no primeiro planeta estudado, onde 1 hora equivale a 7 anos terrestres, na qual acompanhamos uma espécie de resumo das atividades ocorridas neste intervalo de tempo.

“Interestelar” divaga muito sobre isso, aliás. A noção do tempo e como este, por ser efêmero, pode destruir vidas como se fossem insetos. Nós vivemos uma pequena parcela da idade da Terra e nos enganamos imaginando que somos o centro do universo. A mensagem é maior do que se pensa e maximiza ainda mais a jornada dos heróis porque vemos um objetivo transcendental sob a roupagem de estória apocalíptica. Vemos o amor tratado a níveis intergalácticos, o auto sacrifício em função de um bem maior e comunitário.

Enfim, foi “Interestelar” que me tirou do ostracismo, me impulsionando a eternizar o efeito desta jornada em palavras. Poderia ter comentado ainda da qualidade dos ambientes criados pela direção de arte (destaque, por exemplo, ao primeiro planeta explorado, totalmente composto de água, que exprime uma sensação de solidão existencial gigante, além de confusão psicológica igualmente contundente). Poderia ter abordado toda a sequência da sucção pelo buraco negro e o brilhante design de produção do ato final, a forma de transparecer algo inconcebível a nós, seres limitados, através de imagens. Mas escolhi me ater ao que muitos provavelmente vão esquecer em suas análises: a temática sentimental. E me foco nisso por dois motivos: o primeiro seria a demonstração de que seu famigerado diretor consegue, sim, dar o recado completo em uma trama essencialmente sentimental. E, principalmente, porque “Interestelar” nos reserva um gosto nostálgico do que um dia foi o universo da ficção científica: uma oportunidade de imaginar uma hipótese (nem tanto) irreal e utiliza-la como análise social contemporânea. Estou certo de que esta não apenas é uma das maiores obras-primas do ano (se não a maior), mas também um dos mais memoráveis filmes de ficção científica pós anos 2000.

Gênero: Ficção Científica
Duração: 170 min.
Ano: 2014

0 comentários: