Cinefilia 25: O Cavalo de Turim

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Postado por Selton Dutra Zen 2 comentários


Em plena temporada de premiações, este meu post pode soar destoante da massa de blogueiros e críticos, que concentram suas atenções nos Academy Awards. O fato é que apenas ontem, adentrando a madrugada, tive acesso ao filme que marcou a aposentadoria de um dos mais notórios cineastas húngaros da história. Aclamado por suas narrativas nada convencionais, Béla Tarr fechou sua filmografia e iniciou seu ostracismo com “O Cavalo de Turim” (2011). Se por um lado é lastimável que a carreira de cineasta tão impecável tenha se findado, por outro é louvável que seu último trabalho tenha fechado sua obra da forma mais suprema e inexorável possível. E é justamente por isso que não poderia deixar a chance de discutir um filme tão complexo (e ao mesmo tempo simples) quanto este, passar. “O Cavalo de Turim” não apenas é a obra-prima máxima e o apogeu da carreira de Tarr, como também é uma das maiores conquistas do cinema nesta década de 2010.

Em 1889, na localidade de Turim, o filósofo Friedrich Nietzsche luta contra o dono de um cavalo que açoita o animal sem controle. Se desgarrando do animal que abraçava tentando apartar a fúria do camponês, Nietzsche cai e após o trauma não recupera mais sua sanidade – permanecendo sob os cuidados de sua mãe e irmã até falecer em 1900. Após os créditos de abertura, há um prólogo narrado, ainda com a tela em breu, contando o curioso fim de um dos mais importantes filósofos da humanidade. O que poucos se perguntavam nesta estória irônica e trágica – e assunto do qual Tarr decidiu por tratar neste seu longa – é: “Do Cavalo... nada sabemos”.

Vemos, então, o plano de abertura magistral que o diretor reservara para o início da projeção e que acabara por dispensar toda e qualquer explicação conveniente que poderia ser dada acerca de sua premissa: ao acompanhar o caminho de volta para casa de um velho camponês sobre uma carroça, sendo puxada por apenas um cavalo trôpego, percebemos que o que estamos prestes a ver em nada se refere ao filósofo da introdução. Ele é apenas uma válvula propulsora para que o cineasta aborde e divague sobre o corriqueiro e o que muitos esnobam sem se preocupar. Iremos acompanhar a trajetória do cavalo e de seus donos.

Se a própria pretensão de Béla foge do habitual ponto comum de muitos de seus colegas de profissão, sua narrativa é mais ousada e incomum ainda, mesmo que mantenha seu estilo narrativo fiel ao de suas obras anteriores. Ao longo de 147 minutos, o espectador será defrontado com o diário da vida difícil de um pai e uma filha lutando para sobreviver no campo, em meio a uma temporal que castiga a região. A decupagem da situação, porém, leva ao pé da letra o sinônimo da palavra “diário”. Num período de seis dias somos testemunhas diretas da dor e da solidão da família em meio à natureza. A mesma que provém alimento e vida pode arruiná-la sem esforço. De início, a abordagem pode se assemelhar à representação de um conterrâneo seu, Michael Haneke. A diferença primordial entre Haneke e Tarr surge quando o primeiro narra sem opinar, enquanto o segundo é narrador onisciente durante toda a projeção. O cineasta se utiliza da reclusão da dupla para divagar acerca da relação de repressão patriarcal e a amargura de uma vida difícil. Em dado momento do filme, a filha arruma as malas e guarda, junto às roupas, o retrato de uma mulher que certamente foi sua mãe – o que ressalta a sensação de que um dia a família já foi feliz e aumenta a dor que sentimos pela decadência da instituição. Além do mais, a visão machista de mundo domina da primeira à última cena (perfeitamente contextualizada ao local e tempo nos quais decorrem a narrativa) da projeção e se representa na figura do pai que, tendo seu braço direito paralisado, obriga a filha a realizar tarefas que competiam a sua própria figura paterna, como a proteção de suas terras contra invasores e o tratamento do cavalo – isso se ignorarmos o modo como a mulher é tratada como enfermeira de um homem que ainda não está inválido.



O primeiro dia se inicia diretamente com a volta do patriarca para sua humilde casa isolada de tudo e todos. Ele e sua filha guardam o cavalo na estrebaria e entram em casa para se abrigar do vento forte. O homem se deita para descansar (já que, além de parcialmente paralisado, sofre de terríveis crises de tosse) enquanto sua filha prepara o almoço. O cardápio do dia (e das próximas semanas) se resume a batatas cozidas. Após dispor o almoço na panela com água fervente, a garota se senta à janela e observa o vento que castiga sua propriedade. O vento é fonte de dor não apenas por aplacar toda a colheita da família ou castigar suas terras, mas também por mantê-los reféns de algo imprevisível. De nada adianta lutar, pois suas chances contra a natureza são nulas. Dessa forma, basta observar a própria decadência – sua escassez de alimento e mantimentos – através da janela do cômodo.

Quando as batatas já estão cozidas, a garota chama seu pai e o almoço se dá de forma rancorosa, decorada e rítmica. Ambos enojados pela rotina e impacientes consigo mesmos. Durante o resto do dia, a rotina não iria variar muito a não ser pelo corte de lenha ou por trabalhos pontuais.

Nos dias seguintes, passamos a observar as mesmas tarefas sob pontos de vista variados. Se no primeiro dia acompanhávamos toda a ação pelo olhar do pai, no segundo, seguimos sua filha – desta vez desde quando acorda até se deitar. O jogo fotográfico feito para esta representação é brilhante. Através de discretas mudanças de ângulos, passamos a imergir no psicológico da outra parte envolvida na estória. Digo psicológico porque, apesar de extremamente silencioso (ao todo, deve haver umas 5 ou 6 páginas de diálogos – em termos roteirísticos), há muito o que se explorar em cada uma das duas figuras deste filme. Juntas, representam o modo como a passagem do tempo pode ser dolorida e a rotina de sua decorrência, assassina. Para o homem, não há mais muito tempo restante. É doente e brevemente incapaz. Para sua filha, porém, há uma vida pela frente. O homem se angustia pela vida que ficou para trás e que jamais voltará, a mulher sofre pelo futuro brilhante que talvez não chegue a ter.


O elemento crucial do drama, dessa forma, se personifica na consequência da monótona passagem dos dias (agravado e desencadeado pela tempestade que sitia a dupla): a rotina. Ela corrói os personagens os transformando em pessoas mesquinhas, ingratas pelo que tem e rancorosas. Pouco a pouco, enquanto os dias se passam e ambos continuam comendo as batatas cozidas no almoço, pai e filha vão se definhando e perdendo seu elo familiar. A rotina trouxe a mecanicidade para um ambiente já mecânico – os afazeres do campo, o trabalho que se inicia com o nascer do sol. Para ampliar a sensação de deslocamento e monotonia, a fotografia magistral (que faz seu contemporâneo “A Fita Branca” (2011) parecer filmagem de criança) cuida de criar uma ambientação impecável para o enegrecimento do cotidiano. A parca iluminação traz um breu inquebrantável à noite, que a acaba transformando em um instrumento mais opressor que o próprio dia com sua tempestade. Além do mais, a câmera flutua pelo cenário, pautada pela direção endeusável de Tarr, que constrói sua abordagem basicamente sobre planos-sequência longuíssimos e de um rigor técnico incorruptível.

Há de se levar em conta também a plástica sonora que é de uma inteligência sem par. A mixagem do som recorre ao ruído contínuo e ininterrupto do vento, adquirindo uma espécie de loop, o colocando como um coadjuvante indesejável na estória. A trilha sonora, por sua vez, minimalista e propositalmente repetitiva é empregada nos mais oportunos e inspirados momentos, engrandecendo não só o objetivo do cineasta, mas também a beleza da imagem.

Se transpusermos essa temática para o ambiente urbano, inevitavelmente iremos nos deparar com outra obra-prima e excelência no assunto, “O Sétimo Continente” (1989), de Michael Haneke, o que apenas corrobora para uma comparação mais assídua entre os dois diretores. Mas desta vez há uma dualidade na situação. Haneke estreou sua carreira em longas metragens com este filme de 89, enquanto Tarr finaliza sua obra com “O Cavalo de Turim”. Ambos são filmes tratantes do mesmo tema, com uma abordagem lenta e calculista similar. O que diferencia ideologicamente os dois exemplares é que enquanto Haneke deixa a cargo do espectador fundamentar sua teoria sobre o desastre iminente, Tarr aborda um desastre (porque este que está por vir e não é mostrado pode ser considerado inevitável) por um objetivo mais elaborado. “O Cavalo de Turim”, sob um olhar mais amplo e contextualizado, é o espelho da própria vida do cineasta. A obra divaga sobre o tempo. Tempo este que deve afligir em muito um homem com uma bagagem de vida imensa e uma obra cinematográfica igualmente considerável. Assim como Bergman, Tarr deve estar passando por uma crise de idade avançada e, como seu último projeto, nada melhor que deixar arquivado nas imagens sua visão de mundo e de vida. Como dizia Godard quando falava do gênio sueco: “...para Bergman, escrever é fazer perguntas e filmar é responde-las.” Acredito que a intenção de Béla tenha sido equivalente. Estamos diante de uma questão muito maior do que conseguimos responder. Foge de nossa alçada. Mais vale encararmos obras de arte como esta e esperarmos – assim como Bergman e Tarr – encontrar uma resposta plausível. Com essa responsabilidade em mãos, não havia filme mais oportuno para o cineasta deixar sua profissão... legando sua vida exposta em sua obra e tentando solucionar um dos mais filosóficos e insolúveis questionamentos que se possa fazer.