371. Post Tenebras Lux

domingo, 4 de agosto de 2013
Postado por Selton Dutra Zen 0 comentários


(Excelente)

P.S: Este post contém spoilers!

Em 2010, "Tio Boonmee Que Pode Recordar Sua Vidas Passadas" ganhara a Palma de Ouro em Cannes, prêmio máximo do festival. O que não se revelou nenhuma surpresa, já que o filme de Apichatpong parecia ter saído do forno sob medida e com o único objetivo de encabeçar a lista dos vencedores de grandes festivais de arte. Dois anos mais tarde, em 2012, "Post Tenebras Lux" - mais novo filme do mexicano Carlos Reygadas - também concorreu à Palma de Ouro, porém não levou o prêmio (que ficou para a obra-prima "Amour"). Apesar de bem inferior ao filme vencedor, de Haneke, "Post Tenebras Lux" se sobressai ao péssimo "Tio Boonmee..." em todos os aspectos, sob inevitável comparação. Inevitável pois ambos se apoderam de abordagens muito semelhantes e concorreram ao mesmo prêmio, mesmo que em anos diferentes. Acontece que este filme de Reygadas é tudo o que "Tio Boonmee..." quis ser e não conseguiu.

Com uma estética muito mais sinestésica que narrativa, se privilegia aqui as imagens, o som e toda a catarse que disso se possa extrair. O caráter experimental da fotografia e a truncada montagem fazem com que a trama deste projeto seja muito difícil de se explicar, porém fácil de se interpretar. À título de curiosidade, penso em "Post Tenebras Lux" como um retrato pessimista da instituição familiar. Há, certamente, uma linha central de narrativa. Esta talvez se concentre na decadência de uma família sem sobrenome, onde Juan é o pai, Natalia é a mãe, Rut a filha criança e Eleazar, o filho também pequeno. Não tarda para que a suposta felicidade demonstrada pelo casal seja abalada por Juan, evidentemente problemático e mórbido irritado. A família vive, então, em uma montanha russa que parece apenas descer (de mau a pior), conforme o tempo passa. 

Acima de tudo, há uma divagação sobre a luta do bem contra o mal. O bem seriam os filhos que mantém o casal unido, a música que acalenta o sofrimento e a natureza que envolve a vida da família. Não é à toa que se retiram da cidade para viverem ao lado de uma floresta. Contudo, há o mal. O mal através do vício em pornografia, dos vizinhos e conhecidos que insistem em piorar a situação da família e também a hipocrisia que envolve todos os personagens do filme. A hipocrisia dos parentes para com a família ou mesmo do próprio casal. Não há espaço para diálogo e tudo parece perfeitamente bem. Debaixo do tapete, porém, existem muitos assuntos inacabados e angústias a serem desabafadas. Mas a relação se torna emocionalmente frígida, vira mecânica. Agora só reina o sexo como instinto animal. Enxergando a decadência iminente de seu casamento, Juan e Natalia buscam no sexo o elemento que falta em seu dia a dia. Nada acontece e a queda é ainda maior. Juan sabe que a culpa é sua e passa a desenvolver uma frustração latente que se transforma em raiva. Como forma de extravasar, desconta essa raiva nos indefesos: os cachorros. Constantemente os cães aparecem como bodes-expiatórios para os seres-humanos. Reygadas não exita em expor cães sendo atropelados, chutados e espancados, servindo sempre como saco de pancadas de uma sociedade mais hipócrita que a própria rotina da família.

Em "Post Tenebras Lux", só se salvam da podridão humana o casal de crianças, que enxerga o mundo com uma vívida inocência. Porém, até este raio de esperança é ofuscado pela pessimista direção do mexicano, quando filma a sequência de abertura do projeto, o sonho de Rut.

Abrir o filme com esta cena foi uma acertada escolha da direção, já que apresenta o tom sombrio e experimental que perdurará durante toda a projeção da melhor forma possível. O sonho em questão é uma metáfora à perda da inocência de uma garota que nota que a relação de seus pais não está tão boa assim. E se desespera. Sob a luz do dia, a garota se encanta com a natureza e os animais - representando a inocência -, porém não tarda para que a noite caia e a tempestade se aproxime, trazendo junto a sensação de abandono e solidão. A tela se inunda de escuridão e a garota clama por seus pais, sem ser atendida. Toda esta sequência de quase 10 minutos é um exemplo magistral do talento de um diretor na administração de cenas. É admirável como a escuridão surge de forma tão delicada, misteriosa e quando menos se espera, está por toda a parte. A edição de som também é impecável e afronta o espectador com o assustador ruídos dos trovões no céu escuro. 

Dessa forma, se inicia a brincadeira de espaço-tempo promovida pelo filme. A sensação de aparente linearidade engana o espectador que se atrela muito a uma situação específica. A montagem avança e regride no tempo de forma discreta e prática. Assim, para conferir um filme tão enigmático como "Post Tenebras Lux", deve-se, primeiramente, abandonar todas as concessões de narrativa convencional que se tenha. E talvez este seja o motivo de muitos espectadores se sentirem confusos durante as quase duas horas de projeção. Uma prova concreta (e talvez o elemento que mais confunda o público) é o espaço dado aos coadjuvantes na narrativa. Enquanto, em um filme convencional, os coadjuvantes sempre ficariam orbitando ao redor dos protagonistas e sendo inseridos apenas quando deveriam influenciar a trama principal ou acrescentar algo mais ao filme (como deve acontecer em uma linguagem usual), aqui as figuras de segundo plano têm vida própria e independente. É como se "Post Tenebras Lux" se lançasse muito mais no universo dos coadjuvantes que um filme normal - claro que se utilizando desse recurso para denunciar novamente as mazelas da família. Surge, assim, uma teia que abrange e critica muito mais que um grupo de quatro pessoas, mas uma sociedade inteira, o que é muito mais universal e atemporal.

Já em seu encerramento, o mal vence o bem. Um dos empregados da família os rouba e seu ajudante acaba por deixar Juan de cama, com um tiro em suas costas. Não demora para que este morra. O assassino, então, é representado como o mal supremo, é literalmente encarado como um demônio. Quando volta para sua família (na forma de uma figura diabólica) e encontra sua esposa com um amante, vê como sua vida perdeu o rumo (algo que conversa com a história da família protagonista) e acaba por se suicidar de uma forma tão onírica e surreal quanto o sonho da cena de abertura. A natureza se fecha e se entristece, o que se faz notar na cena em que diversas árvores são cortadas na floresta e a chuva começa. Esta mesma chuva que acompanha todos os personagens em seus momentos mais angustiados e desesperados. Sempre que uma discussão se inicia ou há um sentimento corroendo a alma, a chuva vem para envolver a cena em obscuridade.

E através de um túnel das mais diversas sensações (desde asco até relaxamento), Carlos Reygadas nos conduz em um tour de force altamente considerável. Optando por cortes lentos e longos planos sequência, o mexicano surge como o oposto de Terrence Malick, dentro do cinema-contemplação. Enquanto Malick segue a linha de belas imagens com narração lírica, Reygadas prefere o mais simples e obscuro: a beleza natural e um silêncio reflexivo. A fotografia minuciosa cuida para que a câmera não apenas filme, mas flutue nas locações. E a distorção e desfoque na extremidade das cenas em céu aberto ainda me permanece sem explicação, mas virou curiosidade a ser melhor analisada em uma revisão.

Finalmente, com esta visão obscura da vida, "Post Tenebras Lux" conduz o espectador gradativamente a um mundo real, que todos conhecemos, mas tratado de forma fabulesca e contemplativa. Este é, com certeza, um daqueles exemplos de cinema para se sentir, não necessariamente entender. Sou adepto de Buñuel e Lynch, onde se privilegia o sentir. E estou certo de que Carlos Reygadas mexeu com meus sentidos e aguçou minha curiosidade.

Gênero: Drama
Duração: 115 min.
Ano: 2012