Cinefilia 27: Mártires

segunda-feira, 23 de junho de 2014
Postado por Selton Dutra Zen



P.S: Este post contém spoilers!

Existe o terror e o susto. Um não é intrínseco ao outro, embora se completem e coexistam em harmonia. Na realidade, o susto - que deveria ser um impulso para o sentimento de terror - acabou se tornando uma ferramenta preguiçosa e prática para a substituição deste último. Não há mais necessidade de se criar uma atmosfera angustiante, nem de conservar uma tensão gradativa, que deveria se tornar insuportável com o passar dos minutos. A insistente aposta dos cineastas (principalmente contemporâneos) em abrir mão de  uma direção inteligente ou mesmo um thriller funcional pelo caminho fácil do susto vem espantando cada vez mais atualmente - e se o sistema havia funcionado com os slasher movies nos 70's e 80's, ultimamente já perdeu a graça. Para esclarecer e sintetizar: "O Iluminado" (1980), "A Bruxa de Blair" (1999) e "Nosferatu" (1922) são filmes de terror. Toda a série "Sexta-Feira 13" (para não monopolizar títulos contemporâneos) e boa parte dos lançamentos atuais são apenas comércio de susto, sob roupagem de terror. 

E este foi justamente um dos motivos pelo qual resolvi dedicar um espaço por aqui para tratar de um filme que se conserva injustamente esquecido para a maioria do público geral. Trata-se de um daqueles longas para se assistir e jamais esquecer, ou mesmo ser otimista por um tempo depois da sessão. Um tour de force sangrento e vital para os amantes do terror legítimo e para aqueles que desacreditam no alcance criativo do cinema atual. Como já devem ter percebido, é sobre "Mártires" (2008) que irei tratar. E, com isso, os entendidos já sabem o que encontrarão nos próximos parágrafos. 

"Mártir, do grego Marturos: testemunha"

 muito o que se debater sobre a classificação de um mártir. De fato o cerne da definição se encontra no letreiro que encerra o filme e está transcrito acima, mas há também o mártir clássico, aquele que sofre pelo bem comum e morre por uma causa mútua. Seja como for e como preferirem, ambas as versões se enquadram na perspectiva do filme, que se configura sempre muito ampla e margeia diversas análises que se possam inferir sobre o ser humano e suas atitudes mais irracionais que as de um animal selvagem. Antes de dissecar a técnica e a qualidade fílmica, acho válido entrarmos no mérito das análises propostas por este filme. Constantemente, me remeti deveras a "Saló, os 120 Dias de Sodoma" (1975), polêmico filme de Pasolini, justamente pela reflexão que tenta delinear sobre as condições de superioridade de classe e o egocentrismo de um ser humano que se entende melhor que outro apenas por se encontrar desocupado por sua condição social favorável. Basta compararmos os fascistas sádicos do filme de 75 com a organização igualmente sádica comandada pela magnata idosa e veremos que as semelhanças não se restringem apenas a questão de como um grupo de pessoas escraviza outro por bel-prazer, apenas para buscar algo que não conseguem explicar ou saciar: o sexo, no filme de Pasolini e o pós vida, neste aqui. A própria plot possui uma crítica implícita que demonstra ainda mais as semelhanças nos dois longas.

Lucie, uma garota francesa de 10 anos, foge do cativeiro no qual era mantida trancafiada e torturada. Ela se lembra de muito pouco, mas, 15 anos depois, quando vê a fotografia de seus sequestradores no jornal, decide se vingar e por um fim em seu passado obscuro. Naturalmente, Lucie mata aqueles que lhe fizeram mal, mas ainda continua atormentada por alucinações e o peso na consciência - o que acaba assumindo proporções estratosféricas para ela e sua irmã de adoção, Anna, quando as coisas saem do controle. Inicia-se, então, um estudo sobre os limites humanos. Quando submetido às mais horrendas humilhações e processos de tortura constantes, o ser humano passa a se portar como um animal. Até aí, nada de novo no fronte. Diversos filmes já haviam abordado o tema, muitas vezes de forma tão acertada quanto aqui, mas o que destaca "Mártires" da multidão é o caminho que este escolhe para tecer sua crítica social: poucos filmes da atualidade conseguiram atingir um padrão de choque tão grande e supremo quanto este aqui. Contudo, notem que em momento algum a violência extrema surge como apelação, mas sempre como forma de alerta, de cativar a atenção para um objetivo maior - tudo isso, claro, sem cair no clichê da lição de moral. 

E por falar em clichês, grande parte do que conhecemos hoje por terror é fundamentado numa cultura de clichês recorrentes, nascidos ainda nos primórdios de hollywood e no próprio cinema mudo. De certa forma, "Mártires" estabelece uma brincadeira com todos os pontos comuns do gênero e se utiliza disso para criar uma atmosfera única, original e que, principalmente, faça o espectador de refém do início ao fim da projeção. Durante quase 100 minutos, somos nocauteados por uma trama que passeia por diversas classificações, desde o terror de raiz, o suspense macabro e estacionando no gore - muito sangue e sujeira são guiados pela direção firme e incisiva.


A condução do filme é inteligentíssima não apenas por se apossar de forma exemplar da estética do refém, mas também pela capacidade de renovar a própria história, a transformando de tempos em tempos, o que torna toda a experiência mais angustiante e urgente ainda: por isso, quando estamos nos acostumando a um personagem e este morre abruptamente, a cena que se segue cuida de continuar arrastando o público através da projeção - o que resulta em sequências ainda mais desesperadas e uma carga dramática muito elevada.

Mas a inteligência não para por ai: poucas vezes nos últimos tempos me lembro de ter visto uma produção onde a técnica fosse utilizada de forma tão significativa em prol do terror quanto neste filme. Digo que "Mártires" retorna à raiz do gênero justamente pela forma como manipula todos os elementos de cena para não apenas criar um suspense barato ou sustos recorrentes, mas para construir gradativamente um contexto de tensão e depravação absoluta, onde não há escapatória nem paz, até que o suspense atinja níveis doentios. E o terror aqui é muito mais psicológico que imagético, o que conduz o espectador literalmente em uma catarse de choque. Neste ponto, podem notar que a fotografia não adota caminhos óbvios: ao invés  de expor as alucinações de Lucie logo nos primeiros minutos, o filme adota trucagens e enquadramentos de forma que passem a revelar a natureza da criatura apenas quando a curiosidade já está matando quem o assiste. Além do mais, a diferenciação da iluminação entre a casa e seu subsolo é gritante e modelada brilhantemente com o intuito de perpassar a sensação não apenas de sujeira e pecado, mas principalmente solidão. Nisso também contribui a direção de arte, que aposta em extremos para gerar desconforto: se na infância da garota o cativeiro era um local precário que se assemelhava deveras a uma masmorra, já em sua vida adulta, este mesmo local se configura quase que etéreo e rico de uma atmosfera hospitalar - de um manicômio.

A concepção da criatura que amedronta Lucie na primeira metade da projeção também merece destaque particular pela sua eficácia narrativa, uma vez que incorpora algo raríssimo de se presenciar no cinema atual - uma figura tão repugnante e horrenda que apenas a menção de sua presença no ambiente causa desconforto. É um ser abominável, detestável e diabólico do qual jamais queremos ter contato na película. É tudo o que "Mamá" (2013) quis ser e não conseguiu. A mixagem de seus grunhidos, que arrepia qualquer um e é empregada nos momentos certeiros para a construção do terror, só é superada pela inteligente maquiagem que acrescenta, em meio a fantasia da alucinação, um tom de realidade. Toda a aparência deformada que se exprime no corpo e rosto da entidade (sejam as juntas deslocadas, a boca costurada ou a cegueira de um olho) é fruto de uma violência que lhe foi inferida anteriormente. Algo que poderia ter acontecido à própria protagonista, se não tivesse fugido de seu cativeiro a tempo: se transformaria num monstro equivalente, criado por um ser humano.

E cada uma dessas tiradas inteligentes proporcionadas pela integração excepcional de todos os elementos fílmicos só contribui para que o terceiro ato surja como um dos momentos mais apavorantes dos últimos anos. O que assusta é a maldade humana e o circo de horrores que se forma ao redor da sanidade de Anna. Após sua irmã ser assassinada pela organização, Anna é presa em um dos cativeiros e sente na pele o terror que contaminou tantas outras crianças, homens e mulheres até então: o que vemos a partir dai é um desfile de agressão física e verbal que não soa como uma sequência gratuita de gore e depravação, mas, em decorrência da evolução clínica e precisa concedida pela direção à trama e seus personagens, tudo soa como algo apavorante, iminente e desesperador. E o encerramento genial surge como fim inevitável (ainda que original e inesperado).

Em suma, "Mártires" é uma obra-prima do gênero. Não me entendam por exagerado e admito que nem eu mesmo imaginaria gostar tanto deste longa francês. Mas sua inteligência é admirável - e o faz funcionar como poucos atualmente. Sua depravação crítica traz a tona um problema que poucos são sensíveis a entender e sentir de uma forma convencional. E aí está um grande motivo pelo qual este filme merece ser mais difundido (não bastasse toda a qualidade cinematográfica que tem). Sua ideologia gruda e faz pensar. Assisti este filme durante a madrugada e fui me deitar após a sessão. Não consegui dormir, estava sentindo dor - e não sabia discernir se era física ou emocional.


1 comentários:

Anônimo disse...

Olá Selton,

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