(Obra-prima)
É comum que os cinéfilos, de um modo geral, mantenham os dois pés atrás em relação ao parâmetro do cinema norte-americano atual. De certa forma, este preconceito é justificado tendo em vista o declínio da originalidade e relevância dos filmes produzidos nos E.U.A em torno de uma década. Não é novidade que os longas produzidos neste polo deixaram de lado a razão e emoção em detrimento de sucessos plastificados, frios e homogêneos: quanto mais fiel à receita do dinheiro, melhor. Mas quando me deparo com algo do cacife de um suspense policial como este, sinto que ainda há muitas mentes criativas abrilhantando o cinema do norte de nosso continente e trazendo um sopro de esperança em meio aos enlatados habituais. "Os Suspeitos" faz pensar, faz sentir e não apenas é um estudo sensacional da corrupção humana ante a tragédia e o desespero, mas também é o melhor filme lançado no ano de 2013.
Este status pode até soar exagerado e um tanto precipitado - afinal ano passado, embora bem inferior a 2012, rendeu longas de excelente qualidade e forte apelo emocional - mas se considerarmos o histórico de seu realizador, o resultado final se prova algo muito maior que apenas mera cartada de sorte. Denis Villeneuve vem afirmando seu talento e concretizando sua mão firme na direção desde a época de seus primeiros longas, ainda no Canadá. Como pode ser notado no ótimo "Politécnica" (2009) e ainda mais no excelente "Incêndios" (2010), Villeneuve é um daqueles realizadores capazes de chocar sem o apoio imagético. Sua direção é forte e precisa demais, excluindo a necessidade de se apoiar em imagens depravadas para manifestar repulsa ou desconforto no espectador. E por mais estarrecido que eu tenha ficado ao encerramento de seu longa de 2010, é em "Os Suspeitos" que o talento de seu realizador floresce e se expressa de forma mais vívida e incomparável. O que senti (e ainda sinto) ao fim da projeção deste seu mais novo longa é algo que não consigo descrever. Me parece um misto de angustia pela densidade da narrativa ou melancolia pela abordagem da direção. No fundo, o que é não importa, importa mesmo é que "Os Suspeitos" me atingiu de uma forma que há muito tempo não sentia em um lançamento dos últimos anos.
Dentro do campo narrativo, acompanhamos a busca desesperada de duas famílias (e um detetive) para encontrar suas filhas sequestradas. E o que soa como um suspense genérico e é vendido como um thriller policial insosso, na verdade se apresenta como uma divagação sobre um tema que sempre estará em voga: a destruição de um homem pela raiva e obsessão. São duas as premissas abordadas, então: há a investigação que reserva surpresas e revelações perturbadoras e há a transformação de um ser humano digno em um animal. E o mais interessante é a forma como um tema interage com o outro, formando uma rede de personagens e acontecimentos inquebrantável. O roteiro é inteligente e merece elogios principalmente por confiar na capacidade do espectador em se utilizar da lógica para deduzir muitos dos impulsos e nuances da trama. Assim, poupa-nos de sequências explicativas explícitas e reserva mais foco à evolução e aprofundamento da estória. Por isso, cada elemento consta lá por um motivo e nada pode ser dissociado dos 153 minutos de projeção. Ou seja: um daqueles raros casos de filme onde todos os elementos independentes são excelentes e interagem de forma mais magistral ainda - tudo pautado e amarrado pela mão autoral de Villeneuve por trás das câmeras.
A começar pela fotografia admirável, que logo em seu plano de abertura estabelece sua abordagem fria e melancólica através de tons amenos e realce do branco e preto. É notório que o objetivo primeiro de um fotograma é registrar e endossar a trama que está sendo contada. Cabe ao fotógrafo acrescentar vida às imagens e não apenas retratar, mas contar uma estória. Em segundo lugar, então, se posiciona a estética - na medida do possível, as imagens devem realçar a beleza das localidades ou das imagens capturadas (note que beleza é subjetivo). E a cinematografia de "Os Suspeitos" é simplesmente brilhante justamente por agraciar os dois parâmetros de forma ambígua e muito rica. Através de discretos travellings e closes, as imagens exprimem muito do sufocamento e desesperança nos quais a vida dos protagonistas é imersa, enquanto a paleta de cores desbotadas exprime um gigante tom de melancolia e solidão (o que se contrasta pelos planos abertos da imensa floresta sob a neve) que perdura durante toda a projeção. A beleza criada pelas lentes é, simultaneamente, fabulosa aos olhos, mas triste e doentia. Dessa forma, diversos quadros são inundados por um sofrimento latente, enquanto somos obrigados a contemplar a beleza natural e estética remetidas pelo filme.
E toda essa imersão é engrandecida pela montagem deslumbrante - sem dúvidas, a melhor do ano passado. Dotada de uma fluidez invejável (que faz as mais de duas horas e meia de projeção passarem voando), não apenas é magistral pela linha narrativa que cria, mas principalmente pela inteligência com a qual os planos são costurados entre si. As pistas e revelações são posicionadas nos instantes mais precisos e acertados, de forma a não deixar a peteca cair instante algum. Além do mais, a coesão com a qual as cenas são transpassadas só engrandece a identificação do público no filme. E se levarmos em conta a precisão cirúrgica com a qual a trilha sonora se homogeniza às imagens, o resultado final é delirante e único.
Já na linha de frente, há um elenco entrosado e repleto de astros se desconstruindo antes as câmeras. Huck Jackman mais uma vez abandona a pose de sex simbol para dar vida a um homem descontrolado (o pai de uma das garotas desaparecidas), porém frágil - e é justamente essa fragilidade que extermina o seu auto-controle. Sua performance se aproxima demais de seu desempenho no maravilhoso "Fonte da Vida" (2006). E o principal mérito seu é a fuga completa da obviedade. Personificando um homem em plena crise, ao invés de optar por recorrentes explosões de raiva, conduz seu desempenho de forma discreta e controlada. Expressa sua dor extrema apenas com o olhar e trejeitos nervosos em suas mãos e expressões faciais - o que já basta para se fazer entender. Qualquer espectador leigo que se deparar com um olhar poderoso como o exprimido por Jackman poderá notar que aquele homem guarda dentro de si uma dor imensa pronta para explodir. E quando a explosão vem (em raros momentos), o estrago é irremediável. Sua crise dilacera o público que já estava fragilizado pela carga emocional da narrativa até então. Por outro lado, seu companheiro de cena e muitas vezes antagonista, Jake Gyllenhaal, sofre do completo oposto. Sua performance como o detetive encarregado do caso é extravagante e exagerada, se utilizando de algo muito perigoso na construção de uma persona: os vícios óbvios que servem como muleta de interpretação e que muitas vezes surgem como um apoio desesperado para a sua falta de entrosamento com o personagem que interpreta. Isso, claro, se dilui na sopa de atores coadjuvantes que, junto dos protagonistas, formam uma escala homogênea de interpretações, todas acima da média, e praticamente no mesmo grau de qualidade. Há um Terrence Howard que convence e uma Viola Davis que emociona por sua quietude, da mesma forma que Maria Bello impressiona pelo estado semi-depressivo em que se encontra e Melissa Leo volta a me conquistar depois de tantos anos, desde o medíocre (porém muito bem interpretado) "Rio Congelado" (2008).
E ao final, a soma de todas essas variáveis sensacionais - mescladas por uma direção mais que sublime - resulta em um inteligentíssimo thriller, fora do comum. Um dos melhores policiais dos último anos e uma das maiores obras-primas dessa nova década de 20. Seu esquecimento na edição do Oscar deste ano deveria ser tido como crime, uma vez que "Os Suspeitos" é uma conquista imensa, que coloca Denis Villeneuve no seleto rol dos melhores diretores vivos. E ouso dizer que, no parâmetro de suspense, se equipara a colegas de profissão mais experientes, como Eastwood e Demme, quando realizaram os respectivos "Sobre Meninos e Lobos" (2003) e "O Silêncio dos Inocentes" (1991). Pode soar exagerado? Talvez. Contudo, eu aposto minhas fichas na capacidade de Denis em se tornar o maior diretor de thrillers policiais em atividade. Mas isso só o tempo dirá... e que não demore muito para se provar!
Gênero: Drama / Suspense
Duração: 153 min.
Ano: 2013
Marcadores:
Críticas
1 comentários:
Muito bom o texto.
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