(Obra-prima)
Escrever é uma arte e, como tal, exige demais do campo dos
sentimentos. Claro, é através da escrita, do som ou da imagem que nos
desconstruímos e expressamos tudo o que há de melhor ou pior dentro de nós
mesmos – não é à toa que a melancolia sempre foi ótima fonte de inspiração. E
justamente por esse contato íntimo que conservo com a escrita que me senti,
confesso, acuado em escrever sobre “Interestelar” (2014). Conferi o longa em seu fim
de semana de estreia mas demorei para comentá-lo em texto devido uma alienação
gigante que senti ao seu encerramento principalmente por não saber como
transpor o que sentia em palavras. O novo longa do inglês Christopher Nolan é
muito mais letárgico e sentimental do que eu realmente estava preparado para
encarar – e me senti distante, transitando por dimensões ainda não concebidas,
com dificuldade de voltar: “Interestelar” me conduziu a uma viagem tão
espiritualmente devastadora e construtiva como há muito não via em um filme de
ficção.
Conduzindo a épica jornada está Cooper, engenheiro
frustrado e ex-piloto espacial que é chamado a liderar uma expedição com
intuito de estudar outros planetas possíveis portadores de vida, já que a Terra
e toda sua população está à beira do colapso e extinção. Para tanto, devem
penetrar o âmbito desconhecido de um buraco negro, suposto portal para outra
galáxia. O drama é que Cooper pode nunca mais voltar a ver seus filhos, devido
a relatividade de tempo e espaço existente em domínios extra-humanos. Com isso,
o acerto de Nolan começa logo no casting, ao confiar o protagonismo a Matthew
McConaughey, que vem se provando cada vez mais habilitado e maduro para tomar
as rédeas de personagens muito mais complexos, desde 2011, tendo como exemplo
longas como “Killer Joe”. Surgido e estabelecido no mundo das comédias
românticas, sempre como o personagem encarregado de arrancar suspiros da
plateia feminina, Matthew, aqui, encabeça um homem fragilizado pela perda
dolorida de sua mulher, pela frustração de viver deslocado em uma época e
ambiente que não contemplam a criatividade intelectual de sua formação, além de
lutar diariamente para o sustento de seus dois filhos ainda menores. O que mais
impressiona na concepção do personagem é seu metamorfismo durante a projeção.
Não era para menos, após presenciar situações inomináveis, o mínimo a se
esperar de seu comportamento é um amadurecimento gritante – justamente o que
acontece. Afinal, há uma jornada muito mais espiritual que técnica
acontecendo.
Fazem parte do elenco, também em performances notáveis, as
queridas da américa Jessica Chastain e Anne Hathaway, pauteadas por um Michael
Caine já em idade avançada. Todos em um entrosamento capaz de levar diversas
cenas nas costas sem grandes dificuldades.
Mas, dentre tudo, é necessário deixar a racionalidade um
pouco de lado (embora esta se faça fortemente presente ao longo de toda a
trama) e contemplar a conquista do próprio Nolan em um âmbito inédito ao
cineasta. Ao tratar de questões não mais puramente frias e teóricas, o diretor
abre espaço para mostrar seu lado que até então tinha permanecido escondido: a
expressão dos sentimentos. Pela primeira vez, Christopher prova ser um
realizador extremamente hábil no domínio dos sentimentos e fazer com que estes
alimentem a narrativa de forma tão significativa que se torna impossível o não
envolvimento do espectador na jornada interestelar. Seus outros longas, embora
sejam trabalhos notáveis, ainda são frios e carecem de um maior engajamento
humano. “Interestelar” surge justamente para mostrar o contrário e de forma não
tão fácil: extrair sentimentos de uma plot por natureza extremamente técnica e
racional. Não que a racionalidade tenha sido abandonada. Pelo contrário, ela se
faz notar deveras. A diferença é que há espaço narrativo para que a frieza da
racionalidade ande de mãos dadas com o aconchego dos valores humanos. E ainda
se faz mais: Nolan cria a sensação de que sem um, o outro não existiria.
Como se não bastasse reunir duas qualidades escassas no
cinema contemporâneo, fazer pensar e fazer sentir, o diretor ainda reserva um
truque na manga: se apoiar em um dos maiores clássicos da história do cinema,
“2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968), de forma a tentar homenagear a figura
de Kubrick e seu legado inestimável. E o que conta como fortaleza é a atitude
de se basear em “2001...” não como fonte de consulta, mas como fonte de
inspiração. Dessa forma, o processo se torna muito mais de homenagear que de
aplicar a formula de grande sucesso do filme de 68. E quem me conhece, sabe de
minha devoção ao filme de Kubrick – de longe, meu filme favorito e, para mim, o
longa mais próximo a perfeição já concebido e executado no cinema. Desta forma,
surge como uma honra imensa de minha parte presenciar uma obra tão importante
tratada com tanto zelo e igual admiração. O cuidado de Nolan ao reprisar
algumas trucagens empregadas por Kubrick na produção original são destacáveis.
Notem o formato do robô que auxilia os astronautas na jornada interestelar,
muito semelhante ao de um monolito, ou mesmo a forma de tratar o espaço como um
vácuo, desprovido de som. E nisso a mixagem sonora acerta justamente por
descobrir e desconstruir os acertos de Kubrick e aplica-los, quase como um
estudo, de forma discreta, porém sempre eficiente. O uso da trilha sonora, em “Interestelar”,
remete muito ao clássico, com direito a composições mais graves e até trechos
eletrônicos simulando orquestras ou composições eruditas. Há uma tentativa de
modernizar – que obtem muito êxito.
Ainda nesta linha de pensamento, notem como os trajes
espaciais diferem bastante das genéricas vestimentas dos astronautas dos filmes
de ficção atuais, os planos com enquadramento baixo (com a câmera colada às latarias)
adotados pela fotografia e mesmo o design das naves (em especial, a estação que
permanece orbitando e transportando a nave dos protagonistas) se aproximam
consideravelmente da criação kubrickiana, ainda que sempre com a marca do
realizador. Prova disso é a montagem impecável, marca registrada de Nolan, que
engrandece a inteligência da narrativa sem se mostrar carregada ou exagerada. É
interessante como Nolan usa o contexto de relatividade temporal como base de
sua própria lógica de edição: se apossando de uma trama complexa e extensa, o
espectador pode notar o esmero dos envolvidos em retratar a trajetória completa
em pouco menos de 3 horas (que, acreditem, passam voando). O truque para isso é
justamente coordenar as duas realidades (terrestre e espacial) de forma a
transmitir espaços de tempo variados, distorcendo literalmente a noção de tempo
e espaço que o espectador possa vir a conservar durante determinadas sequências
– algo que se revela um acerto extra no encerramento do filme. Assim, Nolan tem
em mãos o controle total do tempo que precisa gastar para evoluir a narrativa
da forma que bem entender. Prova disso é a brilhante sequência do pouso no
primeiro planeta estudado, onde 1 hora equivale a 7 anos terrestres, na qual
acompanhamos uma espécie de resumo das atividades ocorridas neste intervalo de
tempo.
“Interestelar” divaga muito sobre isso, aliás. A noção do
tempo e como este, por ser efêmero, pode destruir vidas como se fossem insetos.
Nós vivemos uma pequena parcela da idade da Terra e nos enganamos imaginando
que somos o centro do universo. A mensagem é maior do que se pensa e maximiza
ainda mais a jornada dos heróis porque vemos um objetivo transcendental sob a
roupagem de estória apocalíptica. Vemos o amor tratado a níveis intergalácticos,
o auto sacrifício em função de um bem maior e comunitário.
Enfim, foi “Interestelar” que me tirou do ostracismo, me
impulsionando a eternizar o efeito desta jornada em palavras. Poderia ter
comentado ainda da qualidade dos ambientes criados pela direção de arte
(destaque, por exemplo, ao primeiro planeta explorado, totalmente composto de
água, que exprime uma sensação de solidão existencial gigante, além de confusão
psicológica igualmente contundente). Poderia ter abordado toda a sequência da
sucção pelo buraco negro e o brilhante design de produção do ato final, a forma
de transparecer algo inconcebível a nós, seres limitados, através de imagens.
Mas escolhi me ater ao que muitos provavelmente vão esquecer em suas análises:
a temática sentimental. E me foco nisso por dois motivos: o primeiro seria a
demonstração de que seu famigerado diretor consegue, sim, dar o recado completo
em uma trama essencialmente sentimental. E, principalmente, porque
“Interestelar” nos reserva um gosto nostálgico do que um dia foi o universo da
ficção científica: uma oportunidade de imaginar uma hipótese (nem tanto) irreal
e utiliza-la como análise social contemporânea. Estou certo de que esta não
apenas é uma das maiores obras-primas do ano (se não a maior), mas também um
dos mais memoráveis filmes de ficção científica pós anos 2000.
Duração: 170 min.
Ano: 2014 Marcadores: Críticas