Logo no início deste ano, ao ingressar na Universidade, decidi por conhecer mais a fundo a biblioteca do Campus. Como cinéfilo doente, o primeiro foco de pesquisas de acervo foi cinema. Entre uma pesquisa e outra, acabei encontrando o corredor específico de audiovisuais. E em meio a uma infinidade de títulos preciosos, um me chamou particularmente a atenção. Era um exemplar antigo, menor (em tamanho e quantidade de cópias) e mal conservado. Daqueles onde uma fita adesiva gruda a lombada, para as páginas não caírem, e o leitor precisa fazer malabarismo para, quando ler, não perder as folhas. É interessante, aliás, que um livro disponibilizado na biblioteca central de uma das maiores universidades da região esteja neste estado de conservação, mas isto é tópico para outras linhas de discussão...
Pois bem, quando retirei o livro da estante, notei que se tratava de uma cópia de "O Século do Cinema", de Glauber Rocha, cineasta que admiro muito. Folheando o livro, um subtítulo sugou minha curiosidade: "Você gosta de Jean-Luc Godard? (Se não, está por fora)." Acontece que eu não gosto de Godard (nem tanto por sua fase Nouvelle-vagueana, mas pelos rumos que sua obra adquiriu após a década de 60) e me interessei pelos motivos de título tão categórico e inquisitivo quanto esse. Apesar de ter conhecimento do fanatismo de Rocha pelo cineasta francês, continuei curioso. E meu interesse só foi aguçado pelos textos envolvendo Chaplin, Lang, Kubrick, etc, que também constavam na edição... acabei levando-o.
O livro é uma coletânea de textos e artigos do cineasta nacional acerca de cinema e de sua carreira, como crítico, jornalista e cineasta. E assim que comecei a lê-lo, notei algo fantástico. Boa parte do livro contava com rabiscos à lápis sobre parágrafos e ideias de Glauber, além de destaques aos trechos mais relevantes a pessoa que o havia lido antes de mim e decidiu deixar arquivado nas páginas amareladas suas impressões. Uma atitude bem romântica, vale citar. E apaixonada, já que os trechos sempre se referiam a belas citações do autor a grandes diretores. Não tardou, porém, para que eu sentisse um desânimo tomando conta do antigo leitor do livro. Suas anotações eram cada vez mais rarefeitas e desinspiradas. Sua alegria havia acabado. Não era para menos, "O Século do Cinema" decaia a cada nova página.
Se, de início, os textos me pareceram extremamente relevantes e interessantes, logo Glauber vai exprimindo tudo de mais irritante e egocêntrico que guardou até então. Seus textos rapidamente deixaram de lado a informação e a opinião, e se tornaram nada mais que um amontoado de parágrafos prepotentes e excessivamente rebuscados, como se o cineasta/autor/crítico tentasse se afirmar a cada nova sentença. E, para mim, não há nada mais enojante que um texto masturbatório (onde, como o próprio nome prediz, serve apenas para o autor se afirmar ante si mesmo). Além de muita falta de confiança, é uma indicação de imaturidade e arrogância sem tamanho. Consequentemente, o nível da coletânea quase negativou.
"O Cékulo do Kynema" (como o próprio Rocha escreve, numa tentativa de mesclar português e russo - sim, isso é um hábito constante na escrita dele!) é uma obra que não eu indicaria a ninguém, a não ser como teste cabal de paciência e tolerância. Alguns de seus textos até que são relevantes, como sua introdução ao Western, seus encontros com Buñuel, Kazan e Fellini e até mesmo sua crítica sobre a obra-prima esquecida pela maioria dos cinéfilos, "A Cruz de Minha Vida" - que, confesso, nunca havia lido uma resenha sobre. Porém, os bons parágrafos são dissolvidos no mar de verborragia política, literária e filosófica que é acachapada em meio às discussões sobre cinema, sem propósito algum, a não ser servir ao ego do diretor. Há trechos em francês, citações incessantes de Eisenstein e Buñuel, a ausência de distinção entre o lado profissional e pessoal de um artista (ao que parece, Rocha não sabe a diferença) e um desprezo latente a Elia Kazan - coisa que o diretor faz questão de jogar no leitor quantas vezes for necessário.
E o mais curioso de tudo é que Glauber, na literatura, é a emulação brasileira do próprio Godard, ex-crítico da Cahiers du Cinéma e prepotente sempre que possível. Ao que tudo indica, Rocha ficou muito tempo exposto aos longas do francês e resolveu imitá-lo na vida, mesmo que este não seja um exemplo muito bom de ser humano a se seguir. Felizmente, essa mesma postura não se repete em seu lado realizador de cinema, já que suas obras, mesmo que claramente referenciadas a Godard, há uma mescla perfeita e equilibrada de todos os questionamentos do próprio Glauber sobre política, religiosidade e futuro cinematográfico. Porque, se fosse como no livro... bom, com os parágrafos acima, vocês podem imaginar minha opinião.
E lembram do leitor que rabiscava as páginas do livro? Em pouco mais de 100 páginas, não havia mais sinal de sua existência. Tinha desistido. Talvez não tenha aguentado as metáforas e referências que só o próprio Glauber era apto a entender. No meu caso, atingi a última folha com muito orgulho e mereço uma medalha de honra ao mérito por esse feito de extrema bravura. Ou pelo menos ser poupado de literatura fatigante por um bom tempo.
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