P.S: Este texto contém spoilers!
Azul, cor da lógica, da sutileza e do bem estar. Logo em seu título (que foi traduzido literalmente ao português), Lynch deixa claro uma ironia perceptível em pouco mais de meia hora de projeção. Ironia esta, que é muito bem-vinda ao projeto, embora não seja o foco da trama. Este se encontra em Jeffrey Beaumount, um rapaz solitário que certo dia encontra uma orelha cortada em meio a um terreno abandonado. Curioso para descobrir o porquê do órgão decepado, decide se infiltrar no apartamento de Dorothy Vallens (agora, uma referência extremamente cabível à "O Mágico de Oz), uma cantora que acredita-se estar envolvida no caso, teve seu filho e marido sequestrados e vive sob pressão do sequestrador. Consequentemente, Jeffrey é descoberto pela cantora e os dois passam a se relacionar num romance, ao passo que o protagonista (Beaumount) tenta solucionar o caso de sua amante.
David Lynch, após ter saído de sua zona de conforto - a loucura obscura de seus projetos anteriores - e realizado sua obra-prima máxima, "O Homem-Elefante", e uma ficção fracassada, "Duna", decide por se aventurar na ideia de um drama ousado, com pitadas certeiras de sensualidade e mirabolância. Lançou, portanto, "Veludo Azul", em 1986. Ainda que este longa seja bem mais contido que seus curtas de stop-motion ou "Eraserhead" (suas obras esdrúxulas anteriores à esta), Lynch deixa sua antiga marca registrada, principalmente no que tange a fotografia, com angulações e colorações típicas da parte alucinada da carreira deste diretor. Mas seus toques de psicodelia também podem ser percebidos na transição do segundo para o terceiro ato do filme, quando Jeffrey é capturado por Frank, o sequestrador que atormenta, estupra e escraviza Dorothy. Nesta sequência, o diretor estadunidense promove uma viagem alucinada, que mais se assemelha a um pesadelo, fundindo músicas e imagens perfeitamente.
Contudo, essa não é a alma deste filme. Sua essência se encontra na reflexão que se promove acerca da raça humana...
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Cinefilia
David Lynch, após ter saído de sua zona de conforto - a loucura obscura de seus projetos anteriores - e realizado sua obra-prima máxima, "O Homem-Elefante", e uma ficção fracassada, "Duna", decide por se aventurar na ideia de um drama ousado, com pitadas certeiras de sensualidade e mirabolância. Lançou, portanto, "Veludo Azul", em 1986. Ainda que este longa seja bem mais contido que seus curtas de stop-motion ou "Eraserhead" (suas obras esdrúxulas anteriores à esta), Lynch deixa sua antiga marca registrada, principalmente no que tange a fotografia, com angulações e colorações típicas da parte alucinada da carreira deste diretor. Mas seus toques de psicodelia também podem ser percebidos na transição do segundo para o terceiro ato do filme, quando Jeffrey é capturado por Frank, o sequestrador que atormenta, estupra e escraviza Dorothy. Nesta sequência, o diretor estadunidense promove uma viagem alucinada, que mais se assemelha a um pesadelo, fundindo músicas e imagens perfeitamente.
Contudo, essa não é a alma deste filme. Sua essência se encontra na reflexão que se promove acerca da raça humana...
"Porque há tantas pessoas como Frank?! Porque
há tantos problemas nesse mundo?!"
há tantos problemas nesse mundo?!"
Em dado momento do filme, esta frase é proferida por Jeffrey, após ver Frank estuprando Dorothy. Ela sintetiza o objetivo principal de Lynch: a reflexão acerca dos valores conturbados de nossa sociedade atual. A prova concreta disso é o próprio sequestrador, retratado como um indivíduo perverso ao extremo e perturbado, funciona como a materialização de todo o mal. Além, claro, de ser o agente desencadeador de todos os problemas no decorrer da projeção. Todavia, as análises de David vão muito mais a fundo. O cineasta desconstrói os dois personagens centrais de uma forma enigmática e interessantíssima. Jeffrey surge como uma figura que obedece, primordialmente, seus instintos e justamente por isso não exita em invadir a propriedade alheia, muito menos ir atrás do culpado. Porém, estas atitudes impulsivas do protagonista, ao longo da projeção, acabam se revelando como meras desculpas para mascarar o fato de Beaumount possuir uma compulsão pelo perigo. Isso pode ser provado no instante em que a cantora o questiona do porquê de ele ter invadido sua casa e ele responde: "Não sei". É principalmente este "não sei" que irá guiá-lo até o encerramento do filme. Porém, à medida em que vai se envolvendo mais e mais com a cantora, ele inicia uma jornada de auto-conhecimento, despertada, naturalmente, por Dorothy e que irá mudar seu modo de vida.
Vallens, por sua vez, aparenta ser uma masoquista acomodada e conformada com sua atual situação. Mesmo tendo seu filho e marido apanhados por um bandido, ela continua sua vida, sem parecer se importar muito com os dois. Obviamente, não é isso que ela realmente sente e descobrimos mais tarde que toda a sua estranheza, seu impulso à dor, é provocado por uma imensa tortura psicológica por parte de Frank, que a expõe à situações horrorosas, provocando sua passageira demência, como observa-se na última cena do longa. A perturbação da personagem funciona como válvula de escape do mundo real em que vive. E isto é o mais aterrador: imaginar a tamanha tortura pela qual o psicológico de Dorothy foi submetido, a ponto de o mesmo ter que desenvolver escapatórias absurdas para suportar o drama.
Esta minha análise pode até soar exagerada, mas não totalmente falha, levando em conta o diretor em questão ou mesmo o modo como ele trabalha diversas passagens, como as mórbidas cenas de sexo (e o estupro), que chegam a perturbar de tão animalescas. Associadas à trilha sonora contrastante e à fotografia já citada acima, configuram os momentos mais importantes de apresentação e evolução de personagens, pois é no instante do sexo que os desejos primitivos dos personagens centrais são revelados, quando suas personas são postas de lado e seus medos emergem na tela. E Lynch foi imensuravelmente feliz ao evoluir a trama deste modo, pois soube muito bem abordar perversão, conflitos psicológicos, suspense e loucura.
Em uma visão macro, a filmografia de David pode ser dividida em duas vertentes: a comum e a alucinada. Porém, "Veludo Azul" é uma película que quebra esta classificação, já que flerta muito com o anormal, sem deixar de ser racional. E é claro que há tantos outros filmes que abordam e criticam a natureza humana de forma mais genial que este aqui, porém, esta obra maravilhosa merece um texto próprio justamente por ser lembrada pela maioria dos espectadores somente pela sua trama de mistério e raramente por seu estudo humano. E, apesar de, em seu terceiro ato, o filme desfocar a questão analítica humana, o questionamento já havia sido feito e continua pertinente aos dias atuais! É sórdido, é louco, é racional, é onírico... é uma obra-prima!
Vallens, por sua vez, aparenta ser uma masoquista acomodada e conformada com sua atual situação. Mesmo tendo seu filho e marido apanhados por um bandido, ela continua sua vida, sem parecer se importar muito com os dois. Obviamente, não é isso que ela realmente sente e descobrimos mais tarde que toda a sua estranheza, seu impulso à dor, é provocado por uma imensa tortura psicológica por parte de Frank, que a expõe à situações horrorosas, provocando sua passageira demência, como observa-se na última cena do longa. A perturbação da personagem funciona como válvula de escape do mundo real em que vive. E isto é o mais aterrador: imaginar a tamanha tortura pela qual o psicológico de Dorothy foi submetido, a ponto de o mesmo ter que desenvolver escapatórias absurdas para suportar o drama.
Esta minha análise pode até soar exagerada, mas não totalmente falha, levando em conta o diretor em questão ou mesmo o modo como ele trabalha diversas passagens, como as mórbidas cenas de sexo (e o estupro), que chegam a perturbar de tão animalescas. Associadas à trilha sonora contrastante e à fotografia já citada acima, configuram os momentos mais importantes de apresentação e evolução de personagens, pois é no instante do sexo que os desejos primitivos dos personagens centrais são revelados, quando suas personas são postas de lado e seus medos emergem na tela. E Lynch foi imensuravelmente feliz ao evoluir a trama deste modo, pois soube muito bem abordar perversão, conflitos psicológicos, suspense e loucura.
Em uma visão macro, a filmografia de David pode ser dividida em duas vertentes: a comum e a alucinada. Porém, "Veludo Azul" é uma película que quebra esta classificação, já que flerta muito com o anormal, sem deixar de ser racional. E é claro que há tantos outros filmes que abordam e criticam a natureza humana de forma mais genial que este aqui, porém, esta obra maravilhosa merece um texto próprio justamente por ser lembrada pela maioria dos espectadores somente pela sua trama de mistério e raramente por seu estudo humano. E, apesar de, em seu terceiro ato, o filme desfocar a questão analítica humana, o questionamento já havia sido feito e continua pertinente aos dias atuais! É sórdido, é louco, é racional, é onírico... é uma obra-prima!
"She wore blue velvet;
Bluer than velvet was the night;
Softer than satin was the light from the stars!"
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