(Obra-prima)
São muito poucos os cineastas dedicados ao cinema primordialmente sensorial na atualidade e destes, menor ainda é o número dos que realmente obtêm êxito. Naomi Kawase se conserva como um dos raros nomes de respeito neste contexto não apenas por realizar trabalhos de extrema delicadeza e sensibilidade, mas também por toda a homenagem que presta ao próprio país. Toda sua carreira foi dedicada a engrandecer a cultura japonesa, e não necessariamente torná-la palatável (fornecer explicações), mas elevar à máxima potência o conceito de união do arcaico (todas as lendas e os hábitos antigos) com o moderno (as relações humanas, o sexo e a selva de pedra). Surge dai sua marca registrada que, pessoalmente, tanto me agrada: a interação entre o ser humano e a natureza. E em "O Segredo das Águas" (2014), seu mais novo filme, isto se faz mais claro que nunca.
A lógica é a mesma de seus filmes anteriores. Um fiapo de trama surge como vetor para uma análise de como nós, seres viventes, nos conectamos com a dinâmica da natureza. Embora aqui haja uma linha narrativa mais concreta. Aqueles que nunca tiveram contato com o cinema de Kawase podem encontrar neste o longa ideal para ingressar no universo da cineasta. O drama começa com a aparição de um cadáver nas águas do mar de uma praia em uma ilha japonesa, cuja minúscula população subsiste em grande parte das riquezas proporcionadas pelo mar e pelas belezas naturais do local. E de alguma forma este incidente altera a rotina de um jovem adolescente que vive a maior parte de seu dia sozinho - sua mão se apresenta como uma figura ausente. Sua realidade individualista é mudada pela presença de uma garota apaixonada por ele que, aparentemente, não é correspondida. O longa se dedica, então, a seguir o dia a dia dos dois jovens enquanto estes aprendem a amadurecer sob a luz de diversas mudanças em suas vidas e na forma de enxergarem o mundo.
Ela possui um contato total com a natureza. O mar é como sua segunda casa, um lugar de libertação, ela se sente livre e dona de seu próprio mundo. Filha de uma xamã, aprendeu com a mãe o poder da natureza e o quanto esta pode se relacionar com o comportamento humano. O garoto, por sua vez, teme o mar e o encara como uma criatura viva, prestes a engolir tudo que se oponha a seus limites. E de certa forma as duas visões se completam, já que a obra pretende justamente abordar o mar como uma entidade viva, capaz de dar e coletar tudo outra vez, capaz de conceder vida e de tirá-la. E por mais que outros elementos naturais se fundam à ideia, o foco se concentra sempre no mar. É como se "O Segredo das Águas" complementasse uma ideia construída por Kawase em suas obras-primas anteriores, "A Floresta dos Lamentos" (2007) e "Hanezu" (2011). No filme de 2007, o foco parece ser o ar, o modo como os dois personagens, perdidos na floresta, são manipulados e surgem tão desprotegidos sob a presença do vento e a forma sutil com que suas vidas vão seguindo como que em lufadas do destino parece ressaltar a ideia. Quatro anos depois, no longa de 2011, Kawase discorre sobre a importância da terra na vida humana e a própria trama se revela muito mais árida e crua, que deixa um gosto estranho com seu encerramento pessimista. "O Segredo das Águas" se conserva na mesma linha. E nunca antes a ideia da natureza influenciando o estado emocional dos personagens (e vice-versa) se fez tão óbvia em sua filmografia. Basta notar que, conforme a vida dos protagonistas vai se conturbando, mais e mais o mar vai se tornando revolto, assim como o vento soprando mais forte, até culminar na tempestade do terceiro ato.
Mas a agressividade natural se contrapõe à sutileza da construção psicológica dos protagonistas - algo que a diretora se especializou ao longo dos anos. Tudo é dito nas entrelinhas. O espectador de fato não consegue identificar os sentimentos do garoto para com sua companheira e passa a analisar cada uma de suas atitudes como se tentando entender a confusão de seu caráter. Em raros momentos podemos vê-lo rindo ou mesmo externalizando algum tipo de emoção mais concreta que não seja o tom indiferente de seu olhar. E nem precisa de fato demonstrar o que sente... a expressão da natureza já traduz tudo que se possa precisar compreender.
E assim como a evolução das personas, também é a técnica: de um extremo bom gosto, os elementos parecem se fundir de forma homogênea e inseparável. Tudo acompanha um mesmo patamar de qualidade em sintonia. A começar pela fotografia que opta mais pela vitalização e embelezamento das cenas filmadas que pela apelação de um clima específico. Assim, as tomadas abertas reservam panoramas belíssimos que engrandecem ainda mais a grandiosidade e o poder do mar e dos elementos sobre a ilha e entrega cenas de extrema inteligência, como toda a sequência em que a mãe da protagonista retorna o hospital e sua cama é instalada em um ambiente onde esta possa observar a figueira deitada em seu leito. A reação da mulher diante do esplendor natural que enxerga é um exemplo onde a imagem adquire um coração à parte, como se fosse viva. Notem como, nesta sequência, a câmera adota angulações geralmente baixas (pequenez) ou planos americanos (igualando a árvore à mulher), de forma que uma criatura se funde como a outra através da mão estendida da mulher.
E obedecendo à mesma funcionalidade da fotografia, a mixagem de som cuida de transformar sons naturais em quase personagens, enquanto a montagem crua e precisa economiza em rodeios e aplica cortes precisos em momentos exatos, de onde vem a força crua da narrativa.
No fundo, "O Segredo das Águas" não passa de um roteiro sobre a descoberta adolescente, Um romance entre duas criaturas afetadas pela fase conturbada da vida. Se descobrindo como seres humanos e nem sempre gostando do que descobrem ser. O que por si só é promissor de nascença. Mas a grandiosidade e o tempero extra são créditos de Naomi Kawase, que neste seu mais novo projeto se mantém fiel à sua estética e entrega uma obra de beleza considerável, humana e cultural, como sempre fez e parece que sempre assim fará. Apresentou um dos trabalhos mais lindos do ano, assim como um dos melhores longas de 2014. É uma pena que muitos cinéfilos ainda se fechem ao trabalho autoral da diretora japonesa e não deem o crédito necessário à mulher: uma das melhores realizadoras (es) da contemporaneidade.
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